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Francesa, com certeza. E daí?

Antonio Carlos Lima*

Fosse a história constituída apenas da versão do conquistador, as celebrações em torno do quarto centenário de São Luís, que hoje atingem seu ponto culminante, teriam, obviamente, que  aguardar três anos mais.

Afinal, durante quase 300 anos, como fruto da doutrina da conquista, cronistas e historiadores, portugueses e brasileiros, atribuíram a fundação desta cidade de São Luís à chamada “Jornada milagrosa”, operação militar planejada em Madri e  organizada em Pernambuco, sob a proteção de Nossa Senhora,  para a expulsão dos franceses, há três anos estabelecidos na Ilha Grande do Maranhão.

O projeto da França Equinocial era, até o final do século XIX, apresentado como simples obra de invasores heréticos, contrários à disseminação da fé católica e usurpadores dos territórios do Novo Mundo, pertencentes, por direito humano e reconhecimento divino, exclusivamente à Espanha e Portugal.  Tratava-se de um episódio a ser esquecido – ou desmerecido. E assim sucedeu, ano após ano, desde a chegada dos portugueses ao Maranhão, naquele ano da graça de Nosso Senhor de 1615.

Essa história só começou a mudar em 1864, com a redescoberta de dois livros que,  desde então,  são  considerados as certidões de nascimento de São Luís: Historia de missão dos padres capuchinhos na ilha de São Luís e terras circunvizinhas, de Claude d’Abbeville, e Continuação das coisas memoráveis ocorridas no Maranhão, nos anos de 1613 e 1614, de Yves d’Évreux.

Os livros estavam, até o milagre da recuperação,  condenados ao mais absoluto esquecimento.  O de Abbeville chegara a ser editado duas vezes, logo após o retorno do Maranhão, mas em seguida desapareceu. Foi citado por alguns historiadores, como João Francisco Lisboa, mas sem o reconhecimento merecido. O livro de Yves d’Évreux  teve pior destino: foi destruído na própria gráfica. Dois exemplares foram salvos pelo capitão François de Razzily, inconformado com o abandono do projeto do Maranhão pela monarquia francesa.

Naquele ano de 1864,  em Paris, o escritor  Ferdinand Denis editou, pela primeira vez, e com ricas anotações, o relato do padre Yves d’Évreux.  Mas, somente dez anos depois foram os dois livros traduzidos e publicados no Brasil – e exatamente no Maranhão.

Eles revelam, em primeiro lugar, que o entreposto de pirataria que os portugueses esperavam  encontrar era,  na verdade,  uma florescente colônia, reunindo cerca  de 500 franceses, entre nobres, negociantes, soldados, religiosos, artesãos, médicos e carpinteiros, em convivência aparentemente harmoniosa com os índios.  Não se tratava de piratas. Apossaram-se do território em nome da regente Maria de Medicis, que para tal os credenciara e municiara, uma vez não reconhecer, como o rei Francisco I, o testamento em que Adão legara aos portugueses e espanhóis a América inteira.

A partir do forte que ergueram no local onde mais de cem anos depois foi edificado o Palácio do Governo, os franceses implantaram as bases de um núcleo urbano, com igreja, convento, cabanas e 17 postos de artilharia. Comandantes foram dividir choupanas com os índios nas 27 aldeias espalhadas por toda a Ilha.

No dia 8 de setembro de 1612, em nome do rei da França e da fé cristã, oficializaram, com uma imponente solenidade, a posse da terra.  Depois de uma missa, saíram em procissão pelo  local onde está hoje a Praça D. Pedro II. Uma cruz foi erguida em memória do grande acontecimento. Do forte e dos navios, canhões dispararam.

Decididos a permanecer, estabeleceram as “leis fundamentais” da colônia. “Ordenamos, para a conservação dos índios entregues à nossa proteção, que ninguém os espanque, injurie, ultraje ou mate, sob pena de sofrer castigo idêntico à ofensa”, diz um dos artigos da Constituição da França Equinocial.

À redescoberta dos livros de Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux, que descrevem aqueles acontecimentos extraordinários, somaram-se, já no século XX,  a revelação da correspondência oficial de  autoridades da França, Espanha e Portugal e a recuperação de documentos maranhenses surrupiados como “butim de guerra” pelos nazistas durante a ocupação da França.

A partir da nova documentação, os livros de história passaram a considerar as cerimônias civis e religiosas de posse da ilha pelos franceses como os atos fundadores da cidade de São Luís. Amparado nesses relatos,  já em 1912 o historiador maranhense José Ribeiro do Amaral publicava o livro Fundação do Maranhão. Nesse mesmo ano, no dia 8 de setembro, realizou-se a primeira celebração pública da fundação da cidade, no seu tricentenário. Evidentemente, em 1712 e 1812 não haveria como fazer essa celebração, pela simples e óbvia razão de estar São Luís sob o domínio lusitano. Aliás, foi o Maranhão o penúltimo Estado a aderir à Independência do Brasil!

Hoje, há consenso na historiografia brasileira quanto ao reconhecimento da origem francesa de São Luís (que tem nome de rei e santo franceses), situação que, evidentemente, não confere nenhum atributo especial à cidade, mas evita a versão pura e simples da reconquista, como a descreveram os portugueses, na ocasião empenhados em destruir  os vestígios da presença daqueles que consideravam apenas um  invasor a ser repelido e desprezado.

São Luís, para nosso orgulho, a mais portuguesa das cidades brasileiras, tem a sua origem francesa, com certeza, sem que esse fato reduza a importância de Portugal na construção da nossa história e da nossa identidade. Só não vê quem não quer. E não lê.

Diante do quê devemos todos comemorar, com festa e alegria, o  quadricentenário desta linda e feliz cidade de São Luís, tesouro do Maranhão e do Brasil, patrimônio de toda a humanidade.

Parabéns, São Luís!

* Jornalista e membro da Academia Maranhense de Letras
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