Muito mais do que uma provocação ao modo de ver o mundo dos líderes evangélicos, ousadia dos cariocas Henrique Vieira e Cosme Felippsen – que não apenas abençoam, mas participam ativamente da festa – é também uma tentativa de conter o esvaziamento das igrejas cristãs no século XXI

HABITUÈ DA MARQUÊS DE SAPUCAÍ. pastor Henrique Vieira desfilou na Mangueira em 2024 e na Portela em 2025
Ensaio
Os dois vídeos que ilustram este post mostram uma situação antes inusitada, mas que já começa a se espalhar para o Brasil inteiro, numa tentativa de salvar a igreja evangélica do sectarismo, evitar o esvaziamento dos templos e inserir as congregações na cultura do século XXI.
- o primeiro vídeo mostra o pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, preparando-se para desfilar pela Portela na homenagem a Milton Nascimento;
- o segundo vídeo traz o pastor Cosme Felippsen, da Igreja Assembleia de Deus, dando a benção apostólica ao carnaval em plena avenida Marquês de Sapucaí.
“Eu sou discípulo de Jesus, sou pastor. Estou pulando em alguns blocos e hoje à noite vou desfilar na Portela em homenagem a Milton Nascimento. Óbvio que eu recebo alguns questionamentos, alguns sinceros e outros bem maldosos sobre minha participação no carnaval. Um pastor participando desta festa? (…) E quanto este olhar que estigmatiza o carnaval, não tem a ver com intolerância, preconceito e racismo? Tudo aquilo que tem origem na cultura popular, negra e de origem africana é visto como alguma coisa errada e ruim”, reflete o pastor Henrique Vieira. (Veja vídeo acima)
“Sou Cosme Felippsen, nascido na primeira favela do Brasil, o Morro da Providência, pastor da Assembleia de Deus e do MNE, Movimento Negro Evangélico, da Frente Evangélica pelo Estado de Direito e do Coletivo Esperançar. Lamento profundamente por muitos dos meus irmãos em Cristo abandonar a cidade em época de carnaval e fazer retiro, dizendo que a cidade está nas mãos de satanás. Digo a vocês que a cidade e o carnaval não são do demônio, e sim dos cariocas. E de todos que amam a vida”, completou Cosme Filippsen. (Veja o vídeo abaixo)
A postura dos dois líderes evangélicos – antes um escândalo capaz de levar à expulsão de uma denominação religiosa, agora é vista cada vez com mais naturalidade até em setores mais conservadores do segmento. E já se espalha pelo país, mesmo que num movimento ainda tímido.
Mas há uma explicação para o fenômeno.
- de acordo com o censo demográfico, em 2010, o número de “evangélicos sem igreja” chegava a 9,5 milhões de pessoas que se declaram adeptos desta religião;
- em 2022, os “desigrejados” – como são chamados estes fieis – já alcançavam 16 milhões de brasileiros, o que os coloca como a segunda maior força deste ramo religioso.
- para efeito de comparação “desigrejados” são os crentes que têm a mesma postura religiosa dos católicos não-praticantes, os que professam a fé, mas não vão em igrejas.
“São muitos os fatores que refletem na subsistência do fenômeno dos desigrejados, porém se destacam os aspectos internos (eclesiásticos) e os aspectos externos (sociológicos). Entre os fatores internos se encontram a decepção com promessas feitas em nome de Deus e que nunca se cumpriram, desapontamentos relacionais, além das práticas e ensinos questionáveis ministrados em ambientes eclesiásticos e a repulsa com os maus exemplos e corrupções das lideranças (pastores, bispos e apóstolos). Já os fatores externos podem ser compreendidos dentro do momento histórico em que vivemos – da chamada pós-modernidade ou modernidade radicalizada -, fortemente marcado por uma visão de mundo pragmática e utilitária e por uma pluralidade de escolhas religiosas, que permite ao indivíduo experimentar conteúdos religiosos diversos”, abordou o jornalista Matheus Leão, na reportagem “Por que milhões de evangélicos estão abandonado suas igrejas”. (Leia aqui)

BENÇÃO APOSTÓLICA. Pastor Cosme Felippsen orou ao lado de líderes espíritas, católicos e de religiões afro pelo carnaval na Marques de Sapucaí
O engenheiro PHd e palestrante Álvaro Vargas aponta que as igrejas cristãs estão esvaziando não apenas no Brasil, mas em todo o mundo; líder espírita, ele aponta três causas principais para o fenômeno, típico da sociedade líquida do século XXI:
- 1 – o fracasso das religiões institucionalizadas em atender as necessidades espirituais de seus adeptos;
- 2 – a evolução da sociedade que refuta seitas baseadas em dogmas que agridem a lógica e o bom-senso;
- 3 – a obsessão espiritual coletiva que se instalou na sociedade, as almas dos homens moralmente fracassados.
“Agride a nossa inteligência, a crença em que a origem da Humanidade partiu de apenas um casal, Adão e Eva, expulsos do paraíso por Deus quando comeram a maçã proibida. Conforme as informações científicas disponíveis, a evolução do homem levou mais de um milhão de anos, refutando este criacionismo bíblico. Essas seitas religiosas também assumem que a Terra foi criada em sete dias, quando foram necessários bilhões de anos para concluir a sua formação. Estes dogmas religiosos ainda agridem o bom senso quando advogam a existência de um céu ocioso e contemplativo para os eleitos, condenando ao inferno eterno os pecadores, num desmentido da sabedoria e do amor da Divindade”, diz Álvaro Vargas, em artigo de 2024.
A postura dos pastores Henrique Vieira e Cosme Felippsen ainda enfrenta forte resistência entre os líderes evangélicos; mas, se choca a crentalhada mais conservadora, pelo menos abre a perspectiva de que os evangélicos não estão isolados do mundo e pretendem abrir-se às experiências do terceiro milênio, após dois mil anos de uma espera pela vinda de um ser celestial que não se concretizou.
E enquanto ele não vem, há um mundo para se viver.
Simples assim…